domingo, 28 de julho de 2013

LEPTOSPIROSE E AS ENCHENTES - PARTE II

Vamos analisar agora o trabalho da Dra. Marcia Regina Buzzar do CVS de SP de nominado Perfil epidemiológico da leptospirose no estado de São Paulo em 2005.

Neste trabalho destacamos dois gráficos. O de número 03 demonstra a percentagem dos casos confirmados segundo situações de risco onde se verifica que 35,18% (o maior de todos) foi por contato em água e/ou lama de enchente.

O gráfico 05 destaca a percentagem de casos confirmados por ambiente do local provável de infecção onde o maior percentual (46%) foi no ambiente domiciliar.


Estes gráficos mostram claramente esta situação de onde o contágio tem maior probabilidade de ocorrer, ou seja, dentro do domicílio pelo maior contágio com os ratos e conseqüentemente, sua urina.

O número de problemas enfrentados pela maioria dos municípios brasileiros na área de saúde é enorme. Aliados à falta de infra-estrutura e saneamento básico, tornam cada vez mais difícil a vida da população nesses municípios.

O processo de urbanização tem concentrado grandes populações animais junto ao homem em suas áreas residenciais, e uma variedade de mamíferos, aves, insetos e outros animais tem compartilhado com ele o ambiente e seu alimento, contribuindo para sua contaminação. Esta interrelação, quando desequilibrada, pode afetar negativamente a todas as espécies.

 Assim, a má qualidade de vida, na qual parte da população vive hoje, favorece o desenvolvimento de inúmeros microhabitats adaptáveis aos vetores, reservatórios e consequentemente às zoonoses.                                                

É o lixo colocado nas ruas à espera da coleta na manhã seguinte; são os terrenos baldios com mato; são os animais de tração convivendo com seus donos; são as criações de animais em área urbana. Ainda existem situações características da situação geográfica de algumas cidades que propicia a
enchentes fazendo com que os esgotos transbordem, expulsando os ratos, obrigando-os a um contato maior com as pessoas.                                                       

O modelo de estrutura de saúde de grande parte dos municípios não é por sí só, suficiente para gerar mudanças radicais no sentido da eficácia. Os programas e tendências atuais de municipalização das ações básicas de saúde ainda não são um conceito fácil de ser absorvido e gerenciado a contento. Com esta tal carência de recursos humanos, financeiros e de disposição administrativa de implantar um sistema preventivo correto, a população se vê cada vez mais carente de proteção, orientação e educação sanitária.

Adorados por uns e amaldiçoados por outros, o certo é que os ratos estão convivendo conosco há

muito tempo, esqueletos de roedores do gênero Mus e Rattus foram encontrados no Pleistoceno médio (2,5 a 1 milhão de anos atrás) junto a restos de alimento. Durante este período tem compartilhado conosco com o alimento, abrigo e proteção contra os predadores. Deste convívio nos
lega prejuízos econômicos e sanitários.

Esta relação tem sido devastadora a ponto de ser responsável pelas várias epidemias de peste que ocorreram na Europa por mais de 1.100 anos, desde o século VI até o século XVII. A mais devastadora epidemia foi a do século XIV que ceifou um quarto da população européia.


E os ratos continuam nos causando uma série de problemas sanitários, seja ao homem, seja aos animais: leptospirose; meningite estreptocócica; erisipela; febre aftosa; miocardites; toxoplasmose; hantavirose; tuberculose; pasteurelose; parabotulismo; paratifo aviário; DRC; enterites; febre pela mordedura de ratos; coriomeningite linfocítica; peste bubônica; tifo murino; febre maculosa; triquinose; e outras. 

Para termos uma idéia do potencial sanitário que a leptospirose nos traz, vamos analisar os números do Ministério da Saúde (SINAM), lembrando que estes números estão na dependência das informações prestadas pelos municípios e que nem sempre são fidedignas. Há uma resistência muito grande no preenchimento das fichas de notificação pelos municípios.

Os quadros abaixo demonstram os casos confirmados por laboratório de leptospirose e dengue (clássica e hemorrágica) de 2001 a 2009. Se optou por escolher no sistema SINAN-NET do MS (http://dtr2004.saude.gov.br/sinanweb/index.php)  dentro do critério de confirmação o laboratorial. Isto porque em leptospirose é possível optar por laboratorial e clínico-epidemiológico e para dengue laboratorial e vínculo-epidemiológico. É claro que um diagnóstico clínico-epidemiológico é mais fidedigno que apenas vínculo-epidemiológico. Por isto optamos pelo critério de diagnóstico laboratorial. Entretanto quando levantamos os óbitos estes são devidos ao total, independentemente do critério de confirmação.

De qualquer forma os critérios foram os mesmos para ambos os casos.

LEPTOSPIROSE
ANO
POSITIVOS
ÓBITOS
LETALIDADE
2001
2.683
422
15,7%
2002
1.996
316
15,8%
2003
2.376
347
14,6%
2004
2.296
381
16,5%
2005
2.807
387
13,7%
2006
3.727
413
11,08%
2007
2.714
341
12,5%
2008
2.890
309
10,6%
2009
2.571
243
9,4%
TOTAL
24.060
3.159
13,1%

 

 

 

 

 

 

 

DENGUE
ANO
POSITIVOS
ÓBITOS
LETALIDADE
2001
122.758
44
0,035%
2002
124.973
149
0,11%
2003
83.610
87
0,10%
2004
27.075
19
0,07%
2005
54.586
72
0,13%
2006
112.215
145
0,12%
2007
176.152
290
0,16%
2008
119.309
482
0,40%
2009
99.073
297
0,29%
TOTAL
919.751
1.585
0,17%

 

 

 

 

 

 

 
Várias são as formas de se avaliar a saúde de uma determinada população ou grupos populacionais. Cada indicador de saúde nos leva ao diagnóstico de situações particulares ou gerais e depende do que se quer.

Um destes indicadores é o Coeficiente de Letalidade que significa o maior ou menor poder que tem uma doença de provocar a morte e permite avaliar a gravidade de uma doença.  Esta relação nos dá idéia da gravidade do agravo, pois indica o percentual de pessoas que morreram por tal doença e pode informar sobre a qualidade da assistência médica oferecida à população.

Para fazermos um comparativo, o dengue tem sido mostrado como um problema de saúde extremamente importante a ponto do Ministério da Saúde  desenvolver ações de controle consumindo verbas enormes para resolver este problema. E assim deve ser.

As taxas de letalidade da leptospirose tem sido superiores à dengue. Só para efeito comparativo, em 2002 o Brasil apresentava 695.834 casos de dengue com 387 óbitos, letalidade de 0,06%. Neste mesmo período, só o Rio Grande do Sul apresentava 458 casos de leptospirose com 21 óbitos, letalidade de 4,6%.

Entretanto estes números não tem sido suficiente para que o Ministério da Saúde tome providências quanto à instalação de programas oficiais de controle de ratos e conseqüentemente da leptospirose.

Em seu livro Epidemiologia e Saúde, Maria Zelia Rouquaryol nos faz uma série de reflexões sobre saúde pública e que se encaixa perfeitamente neste caso ela caracteriza que a prevenção em saúde pública é a ação antecipada com base no conhecimento da história natural, tendo por objetivo interceptar ou anular a evolução de uma doença. Prevenir e prover antes que algo aconteça ou mesmo, cuidar para que não aconteça e sob o ponto de vista epidemiológico tem interesse as relações agente-susceptível-ambiente e é necessário remover fatores ambientais contrários à saúde, ou de criar condições que a promovam.

Uma das formas de controle da leptospirose depende da diminuição da prevalência da infecção por sorovares mantidos na população e na diminuição do grau de associação ecológica das leptospiras mantidas por animais de vida livre. Na prática veterinária, baseia-se na vacinação sistemática e tratamento  com antibioticoperapia dos animais de convívio seja como companhia como também de uso no trabalho, além do controle dos ratos e eliminação de excesso de água do ambiente.

As vacinas para animais disponíveis no mercado possuem geralmente os seguintes sorovares: icterohaemorragiae, canicola, grippotyphosa, hardjo, pomona e autumnalis, mas principalmente
canicola e icterohaemorragiae. Estas contem, entre outras estes sorotipos patogênicos aos humanos o que significa a necessidade de se vacinar os animais como medida profilática de infecção humana.

As medidas de prevenção e controle da doença relativa à fonte de infecção são: controle dos ratos (desratização e anti-ratização), melhoria das condições higiênicas - sanitárias da população, armazenamento apropriado de alimentos, remoção e destino adequado do lixo, cuidados com a higiene, manutenção de terrenos baldios murados e livres de mato e entulhos, limpeza e desinfecção de áreas domiciliares potencialmente contaminadas.

O processo de desratização tem hoje, uma enorme variedade de raticidas possíveis de serem
usados. São permitidos raticidas anticoagulantes sendo proibido o uso de raticidas agudos tanto pela ineficácia de controle como pelos riscos ambientais e à saúde. São os raticidas líquidos. Estes são proibidos pela ausência de antídoto, por terem uma vida média de 50 anos, por persistirem na cadeia alimentar até o sétimo nível trófico e só poderem ser decompostos a mais de 1.5000C.
O mercado tem raticidas anticoagulantes na formulação peletizada para serem usados em áreas secas, blocos parafinados e resinados para áreas úmidas e pó de contato para áreas específicas onde não tenha contato com pessoas, animais e alimentos.

A indústria química tem inovado nas formulações raticidas produzindo blocos com resina vegetal no lugar de parafina aumentando a palatabilidade e resistência à água. Além de possuírem um corante marcador para indicar que a pessoa ou animal teve contato com este. Isto aumenta a segurança aliada ao amargante obrigatório em todos os raticidas.


A desratização preventiva é uma obrigatoriedade do poder público para evitar a proliferação de ratos e conseqüente transmissão de doenças como a leptospirose.

O ambiente urbano tem um grande potencial de infecção e que determinados locais tem uma probabilidade bem maior devido ao grande acúmulo de animais domésticos além dos ratos.

As áreas de risco serão detectadas observando-se as seguintes características: áreas com aglomeração de casos observada no decorrer do tempo; fonte comum de contágio, se houver; fatores físicos/ambientais predisponentes à ocorrência de casos humanos (topografia, hidrografia da região, pontos críticos de enchente, temperatura, umidade, precipitações pluviométricas, pH do
solo, aglomerações populacionais, condições de saneamento básico, disposição, coleta e destino do lixo); fatores sociais (condições de higiene e habitação da população, proteção ao trabalhador, hábitos e costumes da população) e uma alta infestação de ratos e animais domésticos no local.

É importante salientar que cada animal tem seu sorovar específico e que nem sempre é patogênico ao homem, entretanto estes mesmos animais podem hospedar um ou mais sorovares patogênicos ao homem: cães  (Canicola e icterohaemorrhagiae, autumnalis), bovinos (hardjo, pomona), equinos (icterohaemorrhagiae e canicola), suínos (pomona, canicola e icterohaemorragiae) e roedores (icterohaemorrhagiae).

Estes animais permanecem eliminando as bactérias pelo seu tempo de vida. Mesmo naqueles animais doentes e que foram tratados e clinicamente sadios continuam eliminando leptospiras viáveis por até um ano. Isto significa que continuam contaminando o ambiente e os animais, inclusive os homens, que convivem com eles. O que demonstra a necessidade ou até mesmo a obrigatoriedade de se vacinar estes animais de convívio humano.

Um dos agravantes da leptospirose são os momentos após as enchentes que é a desinfecção destes ambientes e objetos no interior das residências. Lembrar que estes ambientes ficam úmidos e com aumento da população de ratos. Estes ratos continuam urinando nestes ambientes e estando
úmidos, sua sobrevida é aumentada. Por isto é fundamental a desinfecção: O cloro mata a bactéria. Se não for possível armazenar os alimentos protegidos da água, o correto a se fazer é eliminá-los. Frutas em geral, carne, leite, verduras, legumes, arroz, feijão, café, manteiga, etc. devem ser inutilizados. Alimentos enlatados podem ser lavados, desde que não tenha havido contato da comida com a água.

O hipoclorito de sódio a 2,5% (água sanitária) mata as leptospiras e deverá ser utilizado para desinfetar reservatórios de água (um litro de água sanitária para cada 1000 litros de água do reservatório), locais e objetos que entraram em contato com água ou lama contaminada (um copo de água sanitária em um balde de 20 litros de água). Deixar em contato com pelo menos 30 minutos.

Durante a limpeza e desinfecção de locais onde houve inundação recente, deve-se também proteger pés e mãos do contato com a água ou lama contaminada.

A partir dos conhecimentos existem podemos dizer que durante as enchentes há um aumento da probabilidade de se aumentar os casos de leptospirose e que determinados locais tem esta chance aumentada.

Existem alguns fatos que deveriam ser mais bem analisados para podermos manter ou não esta afirmação de que as pessoas se infectam nas enchentes, ou seja, em que momento estas infecções tem lugar:

1.     É nos grandes volumes de água nas cidades?

2.     É nos grandes volumes de água nas regiões de menor poder social-econômico?

3.     É no interior das casas e outros onde as pessoas se refugiam?

4.     É nas poças de água que ficam após as enchentes cederem?

5.     É na água e alimentos ingeridos?

6.     Qual é o tempo necessário para que esta pessoa fique em contato com o ambiente contaminado para se infectar?

7.     Qual o inóculo necessário para infectar uma pessoa?

8.     Quais sorovares/sorotipos são encontrados nestes ambientes?

9.     Em qual ou quais destes ambientes encontramos leptospiras?

10.  Como a presença de bactérias nestas águas interfere na manutenção de leptospiras?

11.  Qual é o pH destas águas?

12.  Qual o tempo de vida das leptospiras neste ambiente?

13.  Sendo bactérias aeróbicas em que ambiente teriam maior probabilidade de sobrevivência?

Estas são algumas das questões que precisam ser mais bem explicadas para que possamos entender
melhor a dinâmica da leptospirose nos ambientes de enchente e que a partir destes conhecimentos tenhamos condições de traçarmos estratégias sanitárias a fim de se evitar o aumento de pessoas infectadas.

É lógico que algumas atividades já são bem conhecidas, o que falta é colocá-las em prática lembrando que a Portaria 1.399/1.999 que regulamenta a NOB SUS 01/96 dando competência à União, Estado e Município na área de epidemiologia e controle de doenças em seus artigos 10, 20 e 30. 

Compete à União da mesma forma que ao estado, de forma complementar ou suplementar ao estado e município, respectivamente, a execução de controle e normatização técnica.

O provimento de insumos estratégicos como inseticidas cabe à União. Este é um ponto interessante porque não foi incluído os raticidas como insumos, ou por esquecimento ou por outra razão qualquer. Mas isto pode ser um empecilho na gestão de controle de ratos uma vez que não há como normatizar o controle de ratos sem a aplicação de raticidas. Ora, se a União tem a competência legal de fornecer inseticidas porque não também raticidas?  

Pode ser que por falha minha não tenha conseguido encontrar esta competência nesta Portaria ou em outro instrumento legal que legisle sobre esta matéria.

Ao Estado compete a assistência técnica e capacitação de recursos humanos aos municípios da mesma forma que o provimento de equipamentos de aspersão de inseticidas.

Ao Município compete a captura de vetores e reservatórios, identificação e levantamento do índice
de infestação; registro, captura, apreensão e eliminação de animais que representem risco à saúde do homem; ações de controle químico e biológico de vetores e de eliminação de criadouros e capacitação de recursos humanos.

Não podemos nos esquecer da co-participação legal da comunidade nestes mecanismos de controle e/ou prevenção de agravo, vetores e reservatórios. Esta participação vai a nível de treinamento de recursos humanos por não funcionários públicos dos três níveis hierárquicos mas altamente capacitados para tal da mesma forma que empresas altamente capacitadas que podem colaborar nestes programas e algumas vezes realizar o controle a nível municipal uma vez que muitos municípios não tem recursos humanos para realizar esta tarefa uma vez que pela municipalização houve o repasse de várias ações mas incapazes de serem realizadas com o contingente existente.

Participação esta definida pela Constituição Federal no item III do Art. 198 onde as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Ainda legisla sobre este assunto a Lei 8.142 de 1990 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências onde, em seu Art. 10 cria o Conselho de Saúde, assim definido:

§ 2º - O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo.

Estabelece duas formas de participação da população na gestão do Sistema Único de Saúde: as Conferências e os Conselhos de Saúde onde a comunidade, através de seus representantes, pode opinar, definir, acompanhar a execução e fiscalizar as ações de saúde nas três esferas de governo: federal, estadual e municipal.

Os Conselhos de Saúde são os órgãos de controle do SUS pela sociedade nos níveis municipal, estadual e federal. Eles foram criados para permitir que a população possa interferir na gestão da saúde, defendendo os interesses da coletividade para que estes sejam atendidos pelas ações governamentais.

Os Conselhos de Saúde funcionam como colegiados, de caráter permanente e deliberativo, isto é, devem funcionar e tomar decisões regularmente, acompanhando, controlando e fiscalizando a política de saúde e propondo correções e aperfeiçoamentos em seu rumo. São componentes dos Conselhos os representantes do governo, dos prestadores de serviços, dos profissionais de saúde e usuários.